pense numa pomba que machucou a perna (e talvez até a asa) e manca, mas ninguém se importa - pois as pombas são todas iguais e são muitas - os cachorros são mais legais e fiéis, eles dizem.
não há movimentos pela vida das pombas, adoção de pombas, ou pombas bonitinhas na internet com touquinhas de papai-noel brilhando e dando bom dia.
os velhinhos que jogam migalhas às pombas todo domingo - eles são quase odiados. Importar-se com pombas só poderia significar mesmo a iminência da morte que os puxa os cabelos pouco a pouco.
e nada disso eu digo com pena ou com protesto ou com a bandeira das pombas "salvadoras da bondade humana" - só percebo como elegemos certas criaturas para nossa vida, para nos sentirmos tão importantes nessa cadeia alimentar sentimental da qual se nutre o ego.
lembrei-me de um conhecido que cumpria pena numa instituição que trabalhei. o nome dele era Vaderly e ocasionalmente caçava pombas na rua pra vender - nunca entendi como - mas dizia que as brancas valiam mais.
Eu imaginava aquela situação e meio que ria: Um homem calvo e gordinho caçando pombas na rua em pleno 2014
uma outra passagem: em outra instituição que trabalhei, também uma escola. um professor de educação física aposentado fazia trabalhos voluntários. Ele levava no final do ano uma espingarda de chumbinho - e como este é um texto sobre as pombas, vocês podem imaginar.
e você, já parou pra pensar sobre a vida das pombas? Ignoramos tantas coisas e fingimos saber de tantas outras.
18/12/2015
13/10/2015
Talvez primeira história real
Quando eu te encontrei naquele quadradinho de casa - um bloquinho de dormir, comer e urinar - cheio de cartelas de remédio espalhadas pela casa, vazias, cheias, começadas e abandonadas. Quando eu te encontrei lá, todo não-você, todo sem saber e pior: sem querer saber. Quando isso aconteceu, eu quis te gritar a vida, as coisas, as crianças que passam de bicicleta lá embaixo e os animais e o mundo que continua incansável. Quis te sacudir e te bater, como quem esbofeteia para acordar do sonho mal dormido, como quem chama de volta do transe.
Quando eu te olhei assim eu quis virar o olhar, eu quis falar que não, que logo passa, que era besteira, que não ia ser nada. Eu quis virar o olhar por que tive medo de me ver também ali; de você fazer sentido dentro dessa coisa terrível que habitou sua alma, que arrancou todo o brilho dos seus olhos, que comeu como traça as coisinhas que você zombava nos fazendo rir; que você fazia no sábado de manhã junto com seu tênis de caminhada. Esse parasita silencioso que te arrebatou de você mesmo - e fez o seu chuveiro ficar seco com um pó de deserto, sua pia quase rachada de seca e fungos vivendo na geladeira - esse parasita que, num consultório frio e branco, chamaram de depressão.
16/09/2015
Percebi que sou um construtor. Por isso o interesse constante nos martelos, serras, trenas, parafusos e chaves que eu passo olhando pelas lojas, me fascinando. Compro várias ferramentas, mas uso-as pouco. Gosto de tê-las comigo - pseudo-construtor é o que sou, ou "de boutique", como queira.
Eis que a vida me jogou no caminho dos livros e suas letras e as mãos ficaram ociosas. Percebi o quanto é difícil me satisfazer com o pensamento ideológico, com a filosofia e sua vaporosa aura. Taurino, é bem verdade que sou, mas será por isso essa eterna busca por concretudes e construções?
Imploro para que os parafusos afrouxem, para que a bicicleta quebre e que me peçam para consertar, remendar, lixar, pintar, por, tirar. Preciso disso, como Aureliano na chuva de quatro anos, onze mezes e dois dias em "Cem Anos de Solidão".
13/08/2015
Crônicas de Alface
Até onde, meu Deus? Até onde vai essa alface? Acontece que após meses fiquei pasmo. Reação digna de quem cresceu na megalópole. Vi que do meio da alface despontou um caule firme e reto como uma árvore. Dele ramificaram-se dezenas de flores amarelinhas muito delicadas e sem graça. Bobas e ofuscadas, ficaram sendo as mais lindas que já vi. Eu havia sido privado da totalidade de uma alface durante toda a minha vida; percebi que eu não sabia de nada e nunca soube.
Quem diria que depois de tanto nesta vida eu, já tão amassado pelos martelos da conformidade, teria que lidar com isso; flores de alface. Contei pra todo mundo que conheço, tirei muitas fotos iguais, mas ninguém pareceu realmente entender a proporção dessa descoberta. Flores de alface, meu leitor urbano. Pense nisso.
28/06/2015
Donos de Pixels
Escrever num mundo onde um sentimento não vale mais que 140 caracteres, onde você é uma aba no meio de infinitas outras abas. Tudo já foi exposto, tudo já foi dito, tudo já foi mostrado e explicado com qualidade HD, tudo já está na Wikipedia, tudo.
Porra. Como é difícil escrever aqui - como é doloroso saber que realmente estamos sozinhos - uns com outros, em rede, mas terrivelmente sozinhos.
Tem o cara que compra uma máquina de escrever; tem o cara que escreve de caneta no caderno - atos de desespero, nada mais que isso. Tentamos - eu confesso que também tento - voltar a um lugar, a um tempo onde nada era assim tão solúvel e rápido. Nada de fibra ótica, de megas de velocidade. Uma esfera de vida onde existia novidade, onde tudo era bruto, puro e causava espanto.
Até falar sobre a rapidez e plasticidade da vida – como faço aqui, agora - já se tornou um clichê irreparável, chato e conservador. Nos restará alguma poesia senão a poesia de um museu de cera?
Vocês aqui deste grupo-escrevedor, donos destes bytes, caracteres, perfis, sites e pixels: Vocês são todos lunáticos!
e isso é lindo.
22/06/2015
Porvires
medo de acordar com uma meia só no pé
medo de esquecer o guarda chuva
medo de não ter papel higiênico
medo de perder o ônibus
medo de estar tão corajoso - pela primeira vez
medo de pensar tanto e saber e ver e concluir,
mas não saber o que fazer então
medo da pedrada inevitável, do dia inevitável;
(a chamada da enfermeira para a injeção quando eu era pequeno)
medo da minha vez; do dia que sempre chega pra todos
e que todo mundo sabe o que esse dia é, pois todos já pensaram nele antes de dormir.
viver na inevitável sensação de porvir
do que vai acontecer - ou do que não vai
e assim paramos pra olhar, paralisados
e então se passam 100 anos
e tudo aconteceu,
------------------------------------------------------------------------------------
mas nem estávamos lá.
medo de esquecer o guarda chuva
medo de não ter papel higiênico
medo de perder o ônibus
medo de estar tão corajoso - pela primeira vez
medo de pensar tanto e saber e ver e concluir,
mas não saber o que fazer então
medo da pedrada inevitável, do dia inevitável;
(a chamada da enfermeira para a injeção quando eu era pequeno)
medo da minha vez; do dia que sempre chega pra todos
e que todo mundo sabe o que esse dia é, pois todos já pensaram nele antes de dormir.
viver na inevitável sensação de porvir
do que vai acontecer - ou do que não vai
e assim paramos pra olhar, paralisados
e então se passam 100 anos
e tudo aconteceu,
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mas nem estávamos lá.
17/06/2015
Bandeja das Verdades
com a bandeja das verdades em mãos - as verdades de tudo que eu sou e mais (e ainda pior): tudo aquilo que eu não fui - eu vou descendo ruas muito estreitas e muitas
subo escadas mal acabadas de degraus desiguais. Vou tentando não derrubar nada pelo caminho, como tanta coisa que já deixei
ao chão
Agarro-me às verdades; as duras verdades ditas e dadas levemente, como fossem lindas crianças - carregando fuzis.
Agarro-me, como todos os outros do mundo todo, às verdades - e quando me dou conta, quando já percorri tudo que era caminho,
quando já cheguei, esfarrapado, ao mar, me dou por perdido.
olho para as mãos e vejo - para o espanto de quem carregava bela bandeja - entre os dedos e escorrendo manga adentro,
um belo punhado de lama.
subo escadas mal acabadas de degraus desiguais. Vou tentando não derrubar nada pelo caminho, como tanta coisa que já deixei
ao chão
Agarro-me às verdades; as duras verdades ditas e dadas levemente, como fossem lindas crianças - carregando fuzis.
Agarro-me, como todos os outros do mundo todo, às verdades - e quando me dou conta, quando já percorri tudo que era caminho,
quando já cheguei, esfarrapado, ao mar, me dou por perdido.
olho para as mãos e vejo - para o espanto de quem carregava bela bandeja - entre os dedos e escorrendo manga adentro,
um belo punhado de lama.
19/05/2015
Uma prece também é sonho
Que o sonho
- o sonho que a gente fantasia até mesmo acordado -
não seja o moinho-do-mundo que a todos rói.
(o qual Cartola nos avisou e
Chico falou que era uma Roda e
Drummond também deve ter dito algo assim.)
- o sonho que a gente fantasia até mesmo acordado -
não seja o moinho-do-mundo que a todos rói.
(o qual Cartola nos avisou e
Chico falou que era uma Roda e
Drummond também deve ter dito algo assim.)
16/03/2015
Ainda sobre as concretudes e outros materiais
A habilidade de construir coisas que não podemos carregar, manter e suportar é essencialmente humana. Evocamos universos inteiros que, cedo ou tarde, irão nos atirar ao vácuo; irão pesar 15 toneladas por passo na vida.
Talvez sobre isso que Drummond pensava quando, tão suave, escreveu: "sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso/num só peito de homem…sem que ele estale."
A busca pela concretude pode nos afetar a coluna, pode nos desgastar os joelhos. O mundo concreto que queremos não existe (e nem vai), mas o criamos e recriamos com a tentativa inútil de ter algum controle, de ter uma âncora sólida num mundo de mar mole, líquido e lindo. Que prepotência a nossa!
Talvez sobre isso que Drummond pensava quando, tão suave, escreveu: "sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso/num só peito de homem…sem que ele estale."
A busca pela concretude pode nos afetar a coluna, pode nos desgastar os joelhos. O mundo concreto que queremos não existe (e nem vai), mas o criamos e recriamos com a tentativa inútil de ter algum controle, de ter uma âncora sólida num mundo de mar mole, líquido e lindo. Que prepotência a nossa!
05/02/2015
Do Plástico e suas Aplicações
Por mais que o plástico seja tão julgado e condenado - por mais que se aponte o dedo à moleza e adaptabilidade das pessoas que são flexíveis como tampinhas de tupperware - o plástico da nossa vida é o que nos mantém em pé.
Um peito de gente tem que ter a moleza decisiva do cano de PVC esquentado pelo pedreiro para dar conectividade num encanamento. Um peito de gente estouraria se fossem usadas (somente) as leis do Aço.
Se te gritam “Volúvel! Falso! Incoerente!” vai ser um prazer digno de piscina-de-bolinha responder com um sorriso de incerta plasticidade, o sorriso paralisado e tranquilo de um boneco de silicone que é reciclado tantas e tantas vezes que já foi garrafa pet, camisinha e pneu. É isso que somos: um aglomerado plástico super adaptável que estica sem estourar – na maior parte das vezes.
Que coisa pesarosa as certezas feitas de cimento, ideologias de cimento – cus de concreto e testas de ferro. Por isso amo o plástico e admito minha mentira, minha falha constante – e sorrio quando eu próprio me desmascaro e me saboto.
A gente sempre derrete nos calores industriais da vida.
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