26/12/2019

Geil

Viajei quase um mês sozinho por alguns lugares da Argentina.
Demorei a postar algo sobre a viagem, pois ao mesmo tempo que foi sensacional estar fora tanto tempo (pelo menos pra mim), também foi um processo bem transformador e doloroso. Estar sozinho consigo mesmo em uma viagem foi um exercício emocional bem complexo e que desencadeou várias emoções em mim.


Hoje mesmo, um mês depois da viagem, sonhei que estava em Córdoba.

Geil, este homem da foto, foi o primeiro personagem que marcou minha estadia em Buenos Aires. Um senhor de 65 anos que deixou os EUA por ser muito difícil viver lá com a sua pouca aposentadoria. Juntou dinheiro e veio para a América do Sul em busca de um pouco de dignidade - contava histórias terríveis das ruas da Florida.


Conversávamos muito sobre tudo, sobre a vida, as expectativas... corações partidos. Um dia eu perguntei à ele o que o fazia feliz. Pensou poucos segundos e respondeu: tomar café bem quentinho. Depois disso todos os dias ele passava um café e me dava uma xícara.

Fiz esse retrato com minha câmera e ele ficou muito surpreso. Disse que essa era uma das primeiras fotos dele mesmo que havia gostado. Colocou de perfil no facebook.

14/10/2019

Por favor, motor


Eu subi no edifício Martinelli,
comprei uma lixeira de abrir com o pé em Santana
me perdi na Parada Inglesa.
Fui operado do apêndice na Voluntários da Pátria
da retina na Cantareira
do quinto metacarpo no Campo Limpo ou em Santo Amaro

chorei em Jaçanã, Santa Luzia, São Thomé das Letras, Jardim Peri e Ubatuba

então que se faça uma passarela na avenida de cada esquina
de cada lugar
para que os carros nunca parem de passar
e enfim nos deixem em paz

17/09/2019

aos 27 anos
renasço como observador
pois todas as vidas são secretas

os gestos dos outros:
como bebem água, batem as cinzas do cigarro, se iludem
transam e ficam aflitos, se conformam
perguntam e respondem sozinhos

10/07/2019

Pampulha


eu chorei tomando banho
muito longe do nosso bairro
pois foi onde e só onde achei espaço
para caber tudo quanto se acumulou em mim

esses anos todos só couberam
nos 575 km que separam Jaçanã de Belo Horizonte
e finalmente pude transbordar
deixar tudo fluir na terra
cair como água de um cano

minhas lágrimas correm os encanamentos
e espero que acabem na Lagoa da Pampulha
nadando entre as garças e os jacarés

assim deixo a minha mais verdadeira emoção morando em Minas
uma das únicas coisas que tive certeza na vida
esse amor que agora se liberta um pouco mais

na minha frente meus amigos são um espelho:
amor que ficou depois de anos
penso que esse fio sempre vai estar aqui
tocando como cordas entre nós que amamos um dia

"Eu tenho medo mesmo é de não sentir nada"
e é verdade
esse fio faz chegarem as respostas
para as perguntas mais necessárias

20/06/2019

Você é performance e tudo bem

Antes mesmo de ter alguma idade para, eu já sonhava com o dia em que eu poderia ser nostálgico com propriedade. Olhar fotografias, cartas e lembrancinhas e assim me debruçar sobre uma época, pessoa e lugar. Lágrimas escorreriam e isso seria muito bonito. Sempre gostei de cenas montadas como essa, exageradamente emocionais e precisamente desempenhadas, com cenário, trilha sonora e tudo.
Não é enganação ou falsidade de qualquer tipo. É teatro, personagem e brecha na rotina para que o sentimento aconteça com totalidade em sua grande hora. Palco e plateia é só o que qualquer sentimentozinho precisa. Finda a atuação as luzes apagam e só assim poderemos dormir outra vez.
Vai me dizer você que, no alto da sua anonimidade, nunca planejou, ensaiou e executou uma cena, uma performance da vida real? Aquela discussão que precisou travar com uma pessoa amada,  o dia que quis propositalmente ficar feliz ou triste só para sentir algo específico. Isso não é maquiavélico, é questão de percepção da própria narrativa, de se projetar no mundo.

18/06/2019

eu parei pra olhar uma grande máquina
que trabalhava algo nos canos da Sabesp

fiquei bem do lado dela,
senti o motor que fazia tremer todo meu peito
e formigava as pontinhas dos meus dedos

um cano da máquina jogava muita água no asfalto
água boa, sem cheiro
Dia muito bonito com aquele sol laranja

fiquei pensando
nas engrenagens que nos movem
em tanta água que correu e correrá
nos nossos corpos

olhei para o operário
e ele olhou para mim
com o olho de quem escuta

19/05/2019

Abraxas

quero ver você sendo

errando
mas sendo
colocando a mão no mundo,
enfiando os dedos nas coisas
e nas vidas das pessoas


vai e grita assim:
estou aqui
existindo na corrente
jogado no inevitável
no avesso do controle
Não sei porra,
mas tô aqui de joelhos
o peito rasgado de tão aberto

e entregue

entregue não num altar, não num lugar de santidades,
mas num lugar de carne e osso, de suor e pedra
um lugar de gente, de sêmen
o cheiro de tabaco que mora atrás das orelhas

esperando entrar pra dentro, ordenadamente, todo o caos:
o toque da língua infinita do aleatório

28/03/2019

você me olha como aquelas pessoas limpinhas e alinhadas comprando um sofá
em uma daquelas lojas com mil lâmpadas hiper fortes de centro cirúrgic
ah-ham, ah-ham, ah-ham...

04/03/2019

atrito industrial



me corta igual máquina
com os movimentos de 90 e 45 graus
e o raio quente que sai de dentro da sua língua
de cada dedo da mão
e do pé

nosso atrito é industrial

depois que eu estiver todo quadradinho
recortado em você
sem saber meu nome e onde estou
só coloca minha cabeça no seu peito
e deixa eu ouvir sua engrenagem batendo
tec tec tec tec shhhh tec tec shhhhhh

22/02/2019

Olho de Régua

ser uma pessoa contemplativa
olhar como quem olha a paisagem, a fotografia
nunca interpretar: só registrar e sentir o que há para se registrar e sentir


ser justo consigo mesmo
não exigir nada além do que pode ser medido na régua do justo e do cabível de cada situação, de cada olhar, de cada cigarro, de cada cabelo, de cada rua, de cada lugar, de cada cheiro, de cada gente e de cada pessoa
nada mais além do que se mostra


contemplação não é passividade
mas estar atento nas janelas:
do ônibus, das casas, dos trems e dos prédios lá longe com seus quadradinhos brilhantes
e perceber os movimentos minúsculos da vida e dos corpos
atento em tudo que esbarra em algo que está dentro de nós,
sempre buscando o que faz cócegas atrás do nosso pescoço,
aquela arrepiadinha do toque novo