27/11/2022

Muita Palavra (Diário de Escrita #1)

Tô fazendo um trabalho de psicologia sobre a escrita como ferramenta de elaboração do sofrimento e desenvolvimento de questões pessoais. Esse relato vai nesse sentido.

Me pego resistente ao encarar o papel, mesmo sabendo do benefício que trazem as palavras escritas.

Comecei um poema de amor que não consigo terminar
parece que sempre tá faltando algo, sabe? Vejo se tornar cada vez mais longo, cheio dos caminhos, figuras, passados e futuros e outras complicações.

Fico pensando se atravanco o amor botando muita palavra nele, como faço com a escrita.

Tem uma desafetuosa professora que me critica ao avaliar meus trabalhos: me chama de prolixo (“quem usa palavras em demasia ao falar ou escrever; que não sabe sintetizar o pensamento”, no dicionário.)

Apesar de ninguém gostar desta professora, e por motivos válidos de desdém profissional, eu gosto um pouco dela. Acho que a crítica que faz responde muitos problemas de pensamentos obsessivos e compulsivos que carrego, de poemas sem fim.


28/10/2022

Vc escreve pra quê?

Fico muito tempo sem escrever

Perco o prumo
flutuando muito alto em muito mundo
como dar conta de tudo que preciso despejar aqui
com esse fino funil feito de olhos e dedos?

Perco a prosa
pq custa tanto atualizar o papel com uma história 
sobre coisas leves e tão bobas, mas que fariam tão bem
e então poder reconhecer:
“meu sonho é um pequenino sonho meu”

Penso naquele "escrever de adolescente", 
forçadamente fazer poesia, na base do pé-de-cabra
declamando embaixo da luz do poste e um amigo tocando violão
tudo pra dar um ar bem melancólico e nos acharmos blues demais

Gosto de como o adolescente é uma caricatura de si mesmo
é bonito isso, ter uma fé mais que religiosa em cada coisinha que atravessa a gente

Nessa imensa rede virtual eu só quero ler e ser lido
é isso: escrevo para encontrar as pessoas
e por acidente, como tudo na vida, ser encontrado 
dar e receber palavra
só isso

Mas sou hipócrita: deixo de ler, me afasto
deixo de escrever, me encasulo
morro sem palavra, faminto e talvez vaidoso

13/06/2022

Cais da Palavra

Além do desejo, chega o tempo de por a palavra também pra fora
são muitos os vômitos que nos embrulham pra logo depois desatar
O mar provavelmente foi o vômito de uma deusa
sopa primordial que povoa a terra de criaturas e quimeras

Criaturas e quimeras emitindo sons do passado e luminescências
através de seus corpos e ossos transparentes
com olhos quase humanos nos encaram falando a verdade
a verdade plácida, quieta e inegável dos oceanos:
não se pode controlar fluxos e correntes
nem as marés

Nesta noite existem peixes ao redor da lua, você viu?
Eles vão rodando como se estivessem numa bacia de aço que brilha no meio do mato
Eles nadam sobre as águas que saem dos nossos corpos
e de todos os outros corpos que um dia já nos atravessaram
nessa água tem suor, lágrima, sangue e gozo
e também um punhado de terra, areia e pedra de rio

Um denso vapor vai saindo das virilhas úmidas e detrás das orelhas lambidas
se forma no ar uma névoa perfumada de mel e tabaco
orvalho que embaça todos os vidros
Neste ponto já estaremos cegos se tivermos sorte

Todos os outros corpos que um dia já nos atravessaram
as pessoas que nos habitam e nos bebem
Elas estão aqui
paradas em fila atrás das bolas dos nossos olhos
como grandes cardumes voadores em aquários redondos
esperam por sua vez de falar através das nossas gargantas

Nós, mergulhadores da mente,
através dos cortes sagitais e transversais
vamos nos abrindo como cirurgiões
cortando com a faca da razão
com o bisturi do sentido

O que foi isso que o cérebro mais recente de homo sapiens sapiens, o telencéfalo, fez com a gente, ein?
Parece que nunca terminamos de dizer o que queremos
Seguimos esfacelados, partidos
como cacos de vidro polidos pelo bater repetido das ondas

Que encruzilhada boba essa que nós, humanos, nos metemos:
sempre uma coisa por outra,
sempre uma imagem de frente pra outra,
sempre uma história por cima de outra

O que diríamos nós mesmos ao nos depararmos com o mar, imenso mar, que passa dentro?
Vejo cavernas e monstros do Lago Ness, polvos gigantes
e cavalos marinhos brincando no neocórtex

Nesta noite cada um dança o seu próprio temporal
Nesta noite o mar bateu na casca de ovo que é o mundo
e o mundo enfim acabou numa tromba d'água

A palavra então amanheceu
E desponta como um cais sob as águas todas
Olhamos assim as criaturas feitas de fantasia se alimentarem do confuso desejo humano
e de outros corais

07/05/2022

 é sempre difícil voltar aqui na folha em branco, por isso eu demoro tanto

enfrentar as tantas pessoas que inventei pra ser eu mesmo,
tantas palavras pra me vestir e no final despir?

eu queria falar assim pra mim mesmo
"olha, não é nada disso, embora eu não saiba dizer mais nada"
como cantou o jards macalé

ó: eu só queria prosseguir de um jeito que minha cabeça acompanhasse o resto do corpo
sem essa sensação de desencaixe, de falta, de busca, do que poderia ter sido, do que não foi por pouco, do que foi por muito, do que não me dei conta, do que percebi demais

só aceitar que o buraco existe, seja o da visão, seja o da cabeça
e que só resta sentir o que existe pra sentir
estar em contato com o que está ao redor:
como quem estica a mão e pega a maçã que alcança

eu quero descansar só um pouquinho:
sem ter que falar mais nada ou falando só o que tenho ali, disponível
Sem inventar moda, sem atribuir sentido, sem tecer (tantas) fantasias
choveu molhou, doeu gritou

26/07/2021

A Paz dos Tijolos

Grande poeira levantou quando o operário cortou um duto de concreto. Debruçado sobre a ponte do rio periférico, eu vou ganhando com minha pouca visão o aterro de obras. 

Eu não consigo ficar indiferente aos materiais que desenham o mundo: asfalto, cimento, o plástico e as pedras. Quando penso nas grandes máquinas que trabalham acabo por pensar em todos nós. É como aquele sentimento de quem fica olhando pela janela.

Sinto a britadeira quebrando o chão e me entrego ao tremor inevitável que não é apenas sonoro, mas faz vibrar o corpo todo, fisicamente. Quero estar assim para sempre: como se tivesse sido disparado pelo apertar de um grande botão amarelo. Não mais pensar ou falar ou ter razão, mas apenas sentir um rodar como um motor lubrificado em pleno arranque. Potente, constante e cíclico como uma panela de pressão, ou como uma locomotiva que faz tchi-tchi-tchi-tchi-tchi

Vibrar então inteiro, espalhando os tremores nas vigas de concreto armado de cada prédio da cidade, perturbar a paz singela de cada tijolo, de cada muro.

09/12/2020

Máquinas no meu caminho
abram a trilha, a rota, pros meus pés
com sua pá cheia de garras
raspem o chão de paralelepípedos
levantando fumaça e faísca

os respeito e também me emociono:
única força que para o tráfego
coisa que nem chuva forte, nem corpo caído,
nem micro-organismo pode parar

02/07/2020

Faixa de Pedestre

Será que o Drummond era ansioso? Sinto meu coração ansioso tão pequeno, incapaz de dar conta do mundo-grande, incapaz de enfrentar a máquina do mundo.

Ineficaz ao enfrentar as brigas domiciliares, as disputas de território diárias nas ruas. Sempre amarelo e covarde o meu coração.

Não, eu não nasci pra conquistar nada. Essa palavra é horrível: "conquista". Eu não sou afiado como o ponteiro da bandeira que se finca na terra e nos peitos dos outros e que também me atravessa.

Me custa usar a força, o grito, o dedo levantado e o ponto final.

Eu não quero ser chamado para apontar a verdade, para embasar uma opinião, para dar certezas.  Sou altamente transigível.

Todos os meus limites próprios parecem riscados à giz de professor em chão que só passa carro.

Meus limites são faixas de pedestre que nunca secam e que as crianças destroem ao passar de bicicleta - sem nem perceber.

28/05/2020

Fluxo

ser um fluxo de pensamento
sem fim e começo
atravessando seu corpo
corpo longitudinal, rostral, parietal
inferior, posterior

conduz minha cabeça em você?
mas só de brincadeira
só no jogo, amor-jogo
morde, mas fraquinho

Se eu quero saber? eu quero saber
cansei de ignorar as pessoas
ignorar quem são
e o que sentem as pessoas

Se tem algo que eu quero é saber quem é você

quero saber. me conta também.
coloca a mão no meu rosto
e me olha todo, me atravessa:
transversal, crânio caudal, dorso ventral

conta a história do balanço na beira da estrada?
eu também quero demorar um pouco lá
mesmo que é um lugar seu, só seu, tão seu
a gente compartilha tão bem as coisas, não é?


17/05/2020

Cajado-espanador

as coisas todas convenientemente dispostas:
as pessoas organizadas em cima de uma mesa de madeira
objetos-pessoas como cubinhos de madeira polida  
bem limpas e com as arestas dentro da normalidade geométrica
das leis cartesianas

se existe um contrário da conveniência
eu imploro:
quero toda a inconveniência dentro de um cajado
para carregá-lo e perturbar o que está definido, estabelecido,
normalizado
e cheio de pó

08/02/2020

O agora é o momento que tanto almejo
porém não é fácil distinguir
Estou no presente
ou muito além no tempo?

O tão sonhado momento
onde a mágica acontece
aquela mágica:
tem estrelinhas piscando
e barulhinho feliz repentino
que toca feito despertador
e quase assusta o bem-aventurado;

e tem casal abraçado na chuva
e um campo infinito e verde para correr
esvoaçante roupa colorida
(e cartilagens macias nas rótulas nos joelhos,
pois o correr deve ser sublime)

A felicidade é cafona.

Por vezes passo frio
sem camisa e o pé gelado
não me dou conta
pois quase sempre estive em outro lugar
em outro tempo
que não era o aqui

Enlaçados ao porvir
nós, os ansiosos
tropeçamos em projeções
inventamos futuro e passado:
o ansioso é um pretensioso
tirano do tempo

Agora declaro que
quero agora o meu agora!
não me permitirei mais
ser privado do momento

Quero estar contigo
sem pensar em qualquer rótulo que criei
e que me escravizou

Quero andar ao seu lado
seja você amigo, amor ou anônimo
ou tudo isso
e estar ali, tão ali, tão ali presente
até sentir pesar os ossos!

06/01/2020

acalanto

ai!, é cada tropeço em desnível de calçada
é cada placa grande
que não diz nada
cada trombada, buraco,
saco de lixo que parece cachorro
cachorro que parece criança
sombra que vira degrau
degrau que vira muro

mas já não tenho medo de escuro
ou a pressa de enxergar
nem vergonha do não-ver
hoje só vivo o que tenho
(obrigado psicóloga, ouço sua voz chamando "filipi,
se assenhore de sua vida e da sua história!")

e tenho:
1/4 de visão
meio olho que funciona
um olho e meio que vagueia

e tenho acalanto
no ventinho que penteia o cabelo
nas crianças da escola que me gritam na rua
tio, tio, tio!
em pessoas que me seriam impossíveis de encontrar
se estivesse "preso na gaiola da visão", como disse o mestre

26/12/2019

Geil

Viajei quase um mês sozinho por alguns lugares da Argentina.
Demorei a postar algo sobre a viagem, pois ao mesmo tempo que foi sensacional estar fora tanto tempo (pelo menos pra mim), também foi um processo bem transformador e doloroso. Estar sozinho consigo mesmo em uma viagem foi um exercício emocional bem complexo e que desencadeou várias emoções em mim.


Hoje mesmo, um mês depois da viagem, sonhei que estava em Córdoba.

Geil, este homem da foto, foi o primeiro personagem que marcou minha estadia em Buenos Aires. Um senhor de 65 anos que deixou os EUA por ser muito difícil viver lá com a sua pouca aposentadoria. Juntou dinheiro e veio para a América do Sul em busca de um pouco de dignidade - contava histórias terríveis das ruas da Florida.


Conversávamos muito sobre tudo, sobre a vida, as expectativas... corações partidos. Um dia eu perguntei à ele o que o fazia feliz. Pensou poucos segundos e respondeu: tomar café bem quentinho. Depois disso todos os dias ele passava um café e me dava uma xícara.

Fiz esse retrato com minha câmera e ele ficou muito surpreso. Disse que essa era uma das primeiras fotos dele mesmo que havia gostado. Colocou de perfil no facebook.

14/10/2019

Por favor, motor


Eu subi no edifício Martinelli,
comprei uma lixeira de abrir com o pé em Santana
me perdi na Parada Inglesa.
Fui operado do apêndice na Voluntários da Pátria
da retina na Cantareira
do quinto metacarpo no Campo Limpo ou em Santo Amaro

chorei em Jaçanã, Santa Luzia, São Thomé das Letras, Jardim Peri e Ubatuba

então que se faça uma passarela na avenida de cada esquina
de cada lugar
para que os carros nunca parem de passar
e enfim nos deixem em paz

17/09/2019

aos 27 anos
renasço como observador
pois todas as vidas são secretas

os gestos dos outros:
como bebem água, batem as cinzas do cigarro, se iludem
transam e ficam aflitos, se conformam
perguntam e respondem sozinhos

10/07/2019

Pampulha


eu chorei tomando banho
muito longe do nosso bairro
pois foi onde e só onde achei espaço
para caber tudo quanto se acumulou em mim

esses anos todos só couberam
nos 575 km que separam Jaçanã de Belo Horizonte
e finalmente pude transbordar
deixar tudo fluir na terra
cair como água de um cano

minhas lágrimas correm os encanamentos
e espero que acabem na Lagoa da Pampulha
nadando entre as garças e os jacarés

assim deixo a minha mais verdadeira emoção morando em Minas
uma das únicas coisas que tive certeza na vida
esse amor que agora se liberta um pouco mais

na minha frente meus amigos são um espelho:
amor que ficou depois de anos
penso que esse fio sempre vai estar aqui
tocando como cordas entre nós que amamos um dia

"Eu tenho medo mesmo é de não sentir nada"
e é verdade
esse fio faz chegarem as respostas
para as perguntas mais necessárias

20/06/2019

Você é performance e tudo bem

Antes mesmo de ter alguma idade para, eu já sonhava com o dia em que eu poderia ser nostálgico com propriedade. Olhar fotografias, cartas e lembrancinhas e assim me debruçar sobre uma época, pessoa e lugar. Lágrimas escorreriam e isso seria muito bonito. Sempre gostei de cenas montadas como essa, exageradamente emocionais e precisamente desempenhadas, com cenário, trilha sonora e tudo.
Não é enganação ou falsidade de qualquer tipo. É teatro, personagem e brecha na rotina para que o sentimento aconteça com totalidade em sua grande hora. Palco e plateia é só o que qualquer sentimentozinho precisa. Finda a atuação as luzes apagam e só assim poderemos dormir outra vez.
Vai me dizer você que, no alto da sua anonimidade, nunca planejou, ensaiou e executou uma cena, uma performance da vida real? Aquela discussão que precisou travar com uma pessoa amada,  o dia que quis propositalmente ficar feliz ou triste só para sentir algo específico. Isso não é maquiavélico, é questão de percepção da própria narrativa, de se projetar no mundo.

18/06/2019

eu parei pra olhar uma grande máquina
que trabalhava algo nos canos da Sabesp

fiquei bem do lado dela,
senti o motor que fazia tremer todo meu peito
e formigava as pontinhas dos meus dedos

um cano da máquina jogava muita água no asfalto
água boa, sem cheiro
Dia muito bonito com aquele sol laranja

fiquei pensando
nas engrenagens que nos movem
em tanta água que correu e correrá
nos nossos corpos

olhei para o operário
e ele olhou para mim
com o olho de quem escuta

19/05/2019

Abraxas

quero ver você sendo

errando
mas sendo
colocando a mão no mundo,
enfiando os dedos nas coisas
e nas vidas das pessoas


vai e grita assim:
estou aqui
existindo na corrente
jogado no inevitável
no avesso do controle
Não sei porra,
mas tô aqui de joelhos
o peito rasgado de tão aberto

e entregue

entregue não num altar, não num lugar de santidades,
mas num lugar de carne e osso, de suor e pedra
um lugar de gente, de sêmen
o cheiro de tabaco que mora atrás das orelhas

esperando entrar pra dentro, ordenadamente, todo o caos:
o toque da língua infinita do aleatório

28/03/2019

você me olha como aquelas pessoas limpinhas e alinhadas comprando um sofá
em uma daquelas lojas com mil lâmpadas hiper fortes de centro cirúrgic
ah-ham, ah-ham, ah-ham...

04/03/2019

atrito industrial



me corta igual máquina
com os movimentos de 90 e 45 graus
e o raio quente que sai de dentro da sua língua
de cada dedo da mão
e do pé

nosso atrito é industrial

depois que eu estiver todo quadradinho
recortado em você
sem saber meu nome e onde estou
só coloca minha cabeça no seu peito
e deixa eu ouvir sua engrenagem batendo
tec tec tec tec shhhh tec tec shhhhhh