13/06/2022

Cais da Palavra

Além do desejo, chega o tempo de por a palavra também pra fora
são muitos os vômitos que nos embrulham pra logo depois desatar
O mar provavelmente foi o vômito de uma deusa
sopa primordial que povoa a terra de criaturas e quimeras

Criaturas e quimeras emitindo sons do passado e luminescências
através de seus corpos e ossos transparentes
com olhos quase humanos nos encaram falando a verdade
a verdade plácida, quieta e inegável dos oceanos:
não se pode controlar fluxos e correntes
nem as marés

Nesta noite existem peixes ao redor da lua, você viu?
Eles vão rodando como se estivessem numa bacia de aço que brilha no meio do mato
Eles nadam sobre as águas que saem dos nossos corpos
e de todos os outros corpos que um dia já nos atravessaram
nessa água tem suor, lágrima, sangue e gozo
e também um punhado de terra, areia e pedra de rio

Um denso vapor vai saindo das virilhas úmidas e detrás das orelhas lambidas
se forma no ar uma névoa perfumada de mel e tabaco
orvalho que embaça todos os vidros
Neste ponto já estaremos cegos se tivermos sorte

Todos os outros corpos que um dia já nos atravessaram
as pessoas que nos habitam e nos bebem
Elas estão aqui
paradas em fila atrás das bolas dos nossos olhos
como grandes cardumes voadores em aquários redondos
esperam por sua vez de falar através das nossas gargantas

Nós, mergulhadores da mente,
através dos cortes sagitais e transversais
vamos nos abrindo como cirurgiões
cortando com a faca da razão
com o bisturi do sentido

O que foi isso que o cérebro mais recente de homo sapiens sapiens, o telencéfalo, fez com a gente, ein?
Parece que nunca terminamos de dizer o que queremos
Seguimos esfacelados, partidos
como cacos de vidro polidos pelo bater repetido das ondas

Que encruzilhada boba essa que nós, humanos, nos metemos:
sempre uma coisa por outra,
sempre uma imagem de frente pra outra,
sempre uma história por cima de outra

O que diríamos nós mesmos ao nos depararmos com o mar, imenso mar, que passa dentro?
Vejo cavernas e monstros do Lago Ness, polvos gigantes
e cavalos marinhos brincando no neocórtex

Nesta noite cada um dança o seu próprio temporal
Nesta noite o mar bateu na casca de ovo que é o mundo
e o mundo enfim acabou numa tromba d'água

A palavra então amanheceu
E desponta como um cais sob as águas todas
Olhamos assim as criaturas feitas de fantasia se alimentarem do confuso desejo humano
e de outros corais