22/01/2018

Sou Chão de Plantar


Pelado na sua frente, mas dentro de roupas. Abro os ouvidos, dilato as narinas pra ouvir os detalhes mais bobos da sua vida. Você é qualquer pessoa. Toda e qualquer pessoa me basta e me cabe. Me adapto ao assunto, ao clima, visto os figurinos dos interlocutores para brincar de vida. 
Não me sinto falso, volúvel ou plástico! Sinto-me "possível". Extremamente possível, aberto, suspenso de certezas tão inúteis. Quero as pessoas inteiras. Arrancar frases que saem trêmulas e aliviam ombros, que dão vergonha e medo: que libertam. Ser o solo que permite o brotar de sementes alheias que estavam adormecidas.
Lamber a liberdade que sai da língua. O verbo é o poder, afinal de contas! Vamos inventar nossas narrativas, fazer do dia morto um realismo fantástico, vamos pichar as frases mais desconcertantes nas testas dos insensíveis e construir gozo do sórdido, do pó! Gritar a alma pra fora, nos confessar ao mundo todo.

02/01/2018

Sofrências de Amigo

Não se acaba uma amizade ou qualquer relação sem um vigoroso vômito das quinquilharias do passado. As pessoas põe pontos finais nas pessoas:
Os refinados preferem uma estocada seca e indireta ao matar a relação: Planejam, executam.
Os místicos simplesmente somem sem dar pistas: Puff! Que coragem!
Os neutros fazem mil teatros: se fazem fisicamente presentes, mas de forma tão plástica que dão até vergonha em quem vê.

Começa aqui minha carta. Parece dor de corno, mas é simplesmente o atestado de uma amizade longa que acabou:
Mudar de hábitos, mudar de pessoas. Nossa amizade não tem mais atmosfera para existir. Seríamos, nosso grupinho de sempre, um bando de pseudo-nostálgicos conversando sobre os dias em que tínhamos algo em comum?
Você está certo de terminar essa amizade, mas precisava ser tão cruel com uma relação já agonizante? Precisava desprezar o que de mim você não conhecia e não quis conhecer! Rejeitou tudo de novo que eu quis te mostrar com carinho e empolgação.
Quando decidi te olhar de novo, te re-olhar, deixei de lado aquela atmosfera construída e romantizada do passado. Olhei e vi você no hoje, no agora. Vi a sola do seu sapato! Vi chutes delicados e contínuos que eu fazia questão de não perceber. Ignorei seu cinismo de forma lamentável. Que migalhas, que absurdo.
Cheguei ao ponto de falar que amava você antes de uma grave cirurgia minha. Foi uma tentativa infantil de demonstrar minha intenção sempre reparadora. Declarar amor a uma pessoa tão fechada, tão calculista como você. Que tarefa desconcertante! Você sempre rígido me deu resposta tácita e escorregadia: "Não se preocupe com isso, pense na sua saúde". Foi um conselho sincero, eu sei. "Isso", esse companheirismo nosso, era para você uma causa perdida - ou melhor: "Investimento de tempo desnecessário", para melhor combinar.
Você provavelmente nunca lerá isso. Iremos nos encontrar em lugares e riremos da mesma piada que não gostaríamos de ter rido. Todo mundo achará que nada mudou, mas nós dois saberemos nossos limites.