somos malditos nós que não arrumamos nada
não varremos o chão, não organizamos as velhas gavetas
e nem arrancamos as pessoas das nossas vidas
que vaidade ridícula
somos delicadamente covardes; alheios
nossas mãos tão macias e limpas
incapazes de podar
e assim viver na atmosfera saturada de uma estufa social
uma confusão de plantas-gente,
uma bagunça de pessoas-objeto espalhadas debaixo da cama
e tropeçamos, de novo, até quando?
05/12/2018
31/08/2018
Levanta-te
Aos trinta anos entrou num bar qualquer e comprou seu primeiro maço de cigarros.
- Opa, beleza?, - Beleza! e coçava a calva da cabeça ao passar os olhos pelas marcas. Para melhor decidir pediu para ver um ou outro mais de perto. Saltou um "CÂNCER!" em preto e amarelo de uma das embalagens colocadas sobre o balcão. O atendente se desculpou, visivelmente embaraçado pelo anúncio fúnebre e então virou a embalagem pra baixo rapidamente. Agora sim o rótulo certo e que convinha: Lucky Strike, embalagem colorida.
- Me vê um desses, disse o aventureiro apontando para a caixinha. Caixinha não! Maço. Tinha a segurança plástica dos amadores. Assertivo além da conta e teatral.
- Opa, beleza?, - Beleza! e coçava a calva da cabeça ao passar os olhos pelas marcas. Para melhor decidir pediu para ver um ou outro mais de perto. Saltou um "CÂNCER!" em preto e amarelo de uma das embalagens colocadas sobre o balcão. O atendente se desculpou, visivelmente embaraçado pelo anúncio fúnebre e então virou a embalagem pra baixo rapidamente. Agora sim o rótulo certo e que convinha: Lucky Strike, embalagem colorida.
- Me vê um desses, disse o aventureiro apontando para a caixinha. Caixinha não! Maço. Tinha a segurança plástica dos amadores. Assertivo além da conta e teatral.
Isqueiro
já tinha, pois tudo foi antes planejado. Fumar um cigarro podia ser
coisa pouca, mas ser quem nunca se foi? Isso era um gozo completo. Ele
era uma pessoa das normatividades, do protocolo social e de comer uma
laranja por dia para não gripar. Ser outra pessoa, mesmo que fingindo, é o esporte preferido da humanidade, daí o ritual aqui descrito.
Impulso tardio de adolescente? Não, mas se sim, tudo bem, pois ele
sentiu a alegria de quem faz algo pela primeira vez depois de muito
tempo.
Para conferir ar cinematográfico ao acontecimento, pensou em fazer a pé o caminho usual do ônibus que o levava do trabalho para casa. Tinha a mania de catalogar na cabeça lugares comuns que passava no dia a dia e que, por algum motivo banal, gostava.. Até dava nomes diferentes para ruas, avenidas e prasças. "Rua das Árvores" era o nome inventado desta onde agora estava. Sabia que o nome era bobo e ria de si mesmo ao pensar nele.
De passo calmo ia estranhando o volume quadrado e pontudo. Nesses bolsos nunca passaram nicotina, alcatrão e outras 4.700 substâncias tóxicas. Pensar isso era excitante e um bom começo para algo grandioso. Abriu o difícil lacre do maço com a delicadeza de uma máquina industrial e colocou o cigarro entre os dedos inábeis. Acendeu e sugou apertado como se fosse um canudinho. Tragou como havia lido na internet ontem de noite: "Puxe e prenda o ar como se fosse mergulhar dentro d'água, fazendo assim a fumaça preencher os pulmões".
E mergulhou. As mãos ficaram sem lugar certo, balançando como as de um menino. Não sabia se pegava o cigarro da boca, se o deixava lá, se colocava as mãos no bolso, se parava ou se continuava a andar. Nessa pequena luta onde o corpo tenta se acostumar ao novo, foi fumando repetidamente por vários metros. Voltou o cúmplice para polegar e indicador. Parecia segurar um inseto vivo na ponta dos dedos. Bateu a cinza não se sabe com que dedos, mas com tamanha força que a cinza explodiu no ar. Então a luz do sol poente se encontrou com o mar de cinzas que reluziam como vidrinhos coloridos. Refletiu-se toda a cena numa gota de orvalho inventada e uma pomba grunhiu e as árvores chiaram: acontecia algo.
Foi tomado de uma sensação plácida e tonteante. Pensou que ia cair, pois a visão turvou um pouco. Tibum! Sentiu-se inserido no momento presente, o coração batia conforme o ponteiro dos segundos e foitomado de uma surpreendente consciência da pressão que seus pés exerciam no chão e das marcas que sua vida deixava no mundo e nas pessoas. Então esse era o efeito, o mundo se desacelerando. Sua tia, a clássica tia fumante, sempre falava ao ser questionada dos porquês do fumo "-Não acontece nada, é só por costume".
Quem passou os olhos até aqui percebe que a história caminhou com os mais estranhos detalhes. Vejo-me então obrigado a relatar o desfecho inevitavelmente humano da mesma, mas antes rogo ao charuto aceso do psicanalista para que coloque algum luz neste ocorrido. Desculpo-me, também, por não usar termos próprios da literatura médica ou biológica, pois se o fizesse se perderia totalmente o sentido. Seguimos, pois: Quando ele soprou a fumaça do último trago, viu se desfazer a fumaça no ar. Algo o apertava por dentro. Olhou para baixo num gesto de muita surpresa e percebeu que estava com o pau duro.
Para conferir ar cinematográfico ao acontecimento, pensou em fazer a pé o caminho usual do ônibus que o levava do trabalho para casa. Tinha a mania de catalogar na cabeça lugares comuns que passava no dia a dia e que, por algum motivo banal, gostava.. Até dava nomes diferentes para ruas, avenidas e prasças. "Rua das Árvores" era o nome inventado desta onde agora estava. Sabia que o nome era bobo e ria de si mesmo ao pensar nele.
De passo calmo ia estranhando o volume quadrado e pontudo. Nesses bolsos nunca passaram nicotina, alcatrão e outras 4.700 substâncias tóxicas. Pensar isso era excitante e um bom começo para algo grandioso. Abriu o difícil lacre do maço com a delicadeza de uma máquina industrial e colocou o cigarro entre os dedos inábeis. Acendeu e sugou apertado como se fosse um canudinho. Tragou como havia lido na internet ontem de noite: "Puxe e prenda o ar como se fosse mergulhar dentro d'água, fazendo assim a fumaça preencher os pulmões".
E mergulhou. As mãos ficaram sem lugar certo, balançando como as de um menino. Não sabia se pegava o cigarro da boca, se o deixava lá, se colocava as mãos no bolso, se parava ou se continuava a andar. Nessa pequena luta onde o corpo tenta se acostumar ao novo, foi fumando repetidamente por vários metros. Voltou o cúmplice para polegar e indicador. Parecia segurar um inseto vivo na ponta dos dedos. Bateu a cinza não se sabe com que dedos, mas com tamanha força que a cinza explodiu no ar. Então a luz do sol poente se encontrou com o mar de cinzas que reluziam como vidrinhos coloridos. Refletiu-se toda a cena numa gota de orvalho inventada e uma pomba grunhiu e as árvores chiaram: acontecia algo.
Foi tomado de uma sensação plácida e tonteante. Pensou que ia cair, pois a visão turvou um pouco. Tibum! Sentiu-se inserido no momento presente, o coração batia conforme o ponteiro dos segundos e foitomado de uma surpreendente consciência da pressão que seus pés exerciam no chão e das marcas que sua vida deixava no mundo e nas pessoas. Então esse era o efeito, o mundo se desacelerando. Sua tia, a clássica tia fumante, sempre falava ao ser questionada dos porquês do fumo "-Não acontece nada, é só por costume".
Quem passou os olhos até aqui percebe que a história caminhou com os mais estranhos detalhes. Vejo-me então obrigado a relatar o desfecho inevitavelmente humano da mesma, mas antes rogo ao charuto aceso do psicanalista para que coloque algum luz neste ocorrido. Desculpo-me, também, por não usar termos próprios da literatura médica ou biológica, pois se o fizesse se perderia totalmente o sentido. Seguimos, pois: Quando ele soprou a fumaça do último trago, viu se desfazer a fumaça no ar. Algo o apertava por dentro. Olhou para baixo num gesto de muita surpresa e percebeu que estava com o pau duro.
09/05/2018
A realidade nunca esteve entre nós
tem um sino batendo
e eu desço a rua chegando do trabalho. Penso como sinos batendo são old-school e por quê todo mundo gosta de tudo que é old-school. Duas senhoras conversam em tom de confissão e inconformidade. Minhas chaves estão perdidas na mochila de novo: marmita, blusa, sapato, fone, óculos, livro, papel de bala, isqueiro e chave geladinha na minha mão.
tem um sino batendo
vejo a casa do vizinho mais idoso da rua. Ele tem uma hortinha com couve e taioba e usa um chapéu. Velhinho de chapéu numa horta: é uma meta. Perdão, perdão! É que tem um sino batendo e tudo fica assim agora, muito romântico e lindo e plástico: o sol alaranjado do fim da tarde se junta às badaladas. Estou rindo de tanta cafonice junta, estou achando maravilhoso estar dentro deste cartão-postal. Queria ter agora uma trilha sonora barata e uma frase de efeito: "as badaladas da vida", "os sinos do porvir", "tem um sino batendo"
13/03/2018
Do Verde ao Amarelo
Quando os carros passarem sobre a faixa de pedestres, não me revoltarei. Esperarei indiferente e sem esperanças de um mundo que olhe a todos com igual consideração. Não denunciarei nenhuma injustiça, nem apartarei brigas. Já me sinto roer pelo embrutecimento das emoções. Apenas seguirei - sempre cego - os semáforos das coisas e das pessoas. Do verde ao amarelo, do vermelho ao verde. Obediente e infantil. A cada carnaval me sinto mais vazio dos confetes comuns, mais vazio de prazeres espontâneos. Vejo a senhora que vende pipoca colorida debaixo do sol e como sou egoísta com os meninos que pedem no farol: Não há solução para a vida.
O emaranhado de pontas soltas se acumula ano após ano. Seria inocente esperar que o meu peito não derramasse pelo chão. Derrama, mas não faz sequer uma poça decente. Brevemente úmido como um punhado de terra cozida! Tudo o que despertar vida, cor e arte será banido de mim. Restará o prazer da labuta sem fim, da burocracia, do protocolo, do sistema e de chorar escondido no banheiro.
Sinto que esqueci de tudo o que gostaria de fazer. Regulei tanto o meu modo de agir e ser, medi tanto cada palavra que falei, cada gesto! Fui omisso a mim e me perdi. Outro dia procurei a ponta da fita adesiva com a unha e acabei lembrando da minha história: onde larguei o primeiro passo de todos os meus sonhos? Fui tão alheio que me deixei levar. Covarde. Covarde! Flutuo sobre o grande e chato mar das sensações imediatas, dos prazeres fáceis. Incapaz de planejar uma excursão até a padaria da esquina, incapaz de dar cabo de qualquer demanda pessoal! Inapto para carregar o bilhete de ônibus, mas capaz de pensar sobre a cosmologia que deveria ligar tudo a todos e esses a todas as coisas do mundo.
Fecha o semáforo novamente. O mundo volta invicto com a mesma força das máquinas calculadoras: inquestionável, invencível. Aparece na minha frente, o mundo e nos olhamos um ao outro. Mesmo com toda essa tímida poça de alma que escorreu pelos meus pés, a ordem social me faz atravessar a avenida.
06/02/2018
Apago
Largo pedacinhos de mim por todo o percurso feito. Sou uma borracha escolar esfregada fortemente contra o chão. Assopro os farelos e, cada vez menor, sigo.
22/01/2018
Sou Chão de Plantar
Pelado na sua frente, mas dentro de roupas. Abro os ouvidos, dilato as narinas pra ouvir os detalhes mais bobos da sua vida. Você é qualquer pessoa. Toda e qualquer pessoa me basta e me cabe. Me adapto ao assunto, ao clima, visto os figurinos dos interlocutores para brincar de vida.
Não me sinto falso, volúvel ou plástico! Sinto-me "possível". Extremamente possível, aberto, suspenso de certezas tão inúteis. Quero as pessoas inteiras. Arrancar frases que saem trêmulas e aliviam ombros, que dão vergonha e medo: que libertam. Ser o solo que permite o brotar de sementes alheias que estavam adormecidas.
Lamber a liberdade que sai da língua. O verbo é o poder, afinal de contas! Vamos inventar nossas narrativas, fazer do dia morto um realismo fantástico, vamos pichar as frases mais desconcertantes nas testas dos insensíveis e construir gozo do sórdido, do pó! Gritar a alma pra fora, nos confessar ao mundo todo.
Lamber a liberdade que sai da língua. O verbo é o poder, afinal de contas! Vamos inventar nossas narrativas, fazer do dia morto um realismo fantástico, vamos pichar as frases mais desconcertantes nas testas dos insensíveis e construir gozo do sórdido, do pó! Gritar a alma pra fora, nos confessar ao mundo todo.
02/01/2018
Sofrências de Amigo
Não se acaba uma amizade ou qualquer relação sem um vigoroso vômito das quinquilharias do passado. As pessoas põe pontos finais nas pessoas:
Os refinados preferem uma estocada seca e indireta ao matar a relação: Planejam, executam.
Os místicos simplesmente somem sem dar pistas: Puff! Que coragem!
Os neutros fazem mil teatros: se fazem fisicamente presentes, mas de forma tão plástica que dão até vergonha em quem vê.
Os refinados preferem uma estocada seca e indireta ao matar a relação: Planejam, executam.
Os místicos simplesmente somem sem dar pistas: Puff! Que coragem!
Os neutros fazem mil teatros: se fazem fisicamente presentes, mas de forma tão plástica que dão até vergonha em quem vê.
Começa aqui minha carta. Parece dor de corno, mas é simplesmente o atestado de uma amizade longa que acabou:
Mudar de hábitos, mudar de pessoas. Nossa amizade não tem mais atmosfera para existir. Seríamos, nosso grupinho de sempre, um bando de pseudo-nostálgicos conversando sobre os dias em que tínhamos algo em comum?
Você está certo de terminar essa amizade, mas precisava ser tão cruel com uma relação já agonizante? Precisava desprezar o que de mim você não conhecia e não quis conhecer! Rejeitou tudo de novo que eu quis te mostrar com carinho e empolgação.
Quando decidi te olhar de novo, te re-olhar, deixei de lado aquela atmosfera construída e romantizada do passado. Olhei e vi você no hoje, no agora. Vi a sola do seu sapato! Vi chutes delicados e contínuos que eu fazia questão de não perceber. Ignorei seu cinismo de forma lamentável. Que migalhas, que absurdo.
Cheguei ao ponto de falar que amava você antes de uma grave cirurgia minha. Foi uma tentativa infantil de demonstrar minha intenção sempre reparadora. Declarar amor a uma pessoa tão fechada, tão calculista como você. Que tarefa desconcertante! Você sempre rígido me deu resposta tácita e escorregadia: "Não se preocupe com isso, pense na sua saúde". Foi um conselho sincero, eu sei. "Isso", esse companheirismo nosso, era para você uma causa perdida - ou melhor: "Investimento de tempo desnecessário", para melhor combinar.
Você provavelmente nunca lerá isso. Iremos nos encontrar em lugares e riremos da mesma piada que não gostaríamos de ter rido. Todo mundo achará que nada mudou, mas nós dois saberemos nossos limites.
Cheguei ao ponto de falar que amava você antes de uma grave cirurgia minha. Foi uma tentativa infantil de demonstrar minha intenção sempre reparadora. Declarar amor a uma pessoa tão fechada, tão calculista como você. Que tarefa desconcertante! Você sempre rígido me deu resposta tácita e escorregadia: "Não se preocupe com isso, pense na sua saúde". Foi um conselho sincero, eu sei. "Isso", esse companheirismo nosso, era para você uma causa perdida - ou melhor: "Investimento de tempo desnecessário", para melhor combinar.
Você provavelmente nunca lerá isso. Iremos nos encontrar em lugares e riremos da mesma piada que não gostaríamos de ter rido. Todo mundo achará que nada mudou, mas nós dois saberemos nossos limites.
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