23/01/2009

Sobre o Roubo



Certas tardes você se sente vazio e incompleto. Acredito que as tardes sejam especiais e até mesmo mágicas, elas parecem um período de transição para algo especial, que é a noite. Ela funciona como um preâmbulo para os acontecimentos noturnos. Talvez por isso as tardes sejam nostálgicas.
Eu pensava nisso enquanto subia a rua, numa tarde de sexta-feira. Eu estava angustiado; Tinha que levá-la à rodoviária, e não há nada pior que alguém querido partir numa tarde, pois você sempre vai ter o resto da tarde e toda a noite para ficar sozinho. Não reclamo de tardes com pessoas queridas, só digo que a noite combina mais com tais pessoas. Não sei explicar o por quê, a noite tem um cheiro, que é um tempero para uma boa companhia.
Foi então que vimos quatro livros em cima de uma mureta redonda, que fica numa esquina bem movimentada, ainda mais de sexta-feira com os bares fervilhando. Os livros estavam alinhados, como se arrumados por alguém. -Deve ser de alguém, concluímos, e seguimos nosso caminho. Eu estava intrigado, não se vê livros por aí jogados (de um modo organizado) todos os dias. Ainda mais numa tarde. Uma tarde de sexta.
Eu não quis isso! Juro que não! Mas fiquei completamente fora de mim quando, voltando pelo mesmo caminho, percebi que os livros ainda estavam lá! Não pude resistir, e andei devagar, perto da mureta para observar esses objetos fascinantes que são os livros. Os três últimos livros eram vermelhos, eram sobre idiomas, mas ironicamente, o mais próximo de mim foi o que me chamou a atenção. Preto, capa dura e desenho em dourado. Não era uma bíblia, pois um gato maligno estava desenhado aos pés de uma senhora com um longo vestido, que se espalhava por sobre toda a extensão da capa. Pude ler “Poe - Histórias Extraordinárias”.
UM PRESENTE DE DEUS! Isso! Um presente divino um livro numa tarde sexta-feira! Presenciei um milagre! Participei de um milagre. Bem sabe você que não se nega um presente. Ainda mais divino.
Eu desci a rua como se o livro sempre fora meu. Por algum motivo eu me sentia bem sem nenhum traço de remorso. Como eu poderia deixar aquele livro ali, sozinho? Digam-me! Como alguém, n’uma tarde de sexta-feira pode deixar livros ao relento?!
Folheei as páginas para ver se algo estava escrito, quem sabe uma mensagem de parabéns, uma dedicatória de algum amor, enfim, qualquer coisa. Mas nada estava escrito. Me senti poderoso, como qualquer homem que se apropria de algo que não lhe pertencia. Acontece que muitas vezes esse sentimento de poder é falso e nebuloso.
Fiz as formalidades e coloquei o livro na estante com meus outros, para que pudesse sentir-se melhor. Sabe-se lá, deve ser um tédio passar uma tarde de sexta-feira do lado de três livros de idiomas.
Três batidas apressadas bateram na porta. Tive um mau presságio e por um momento único senti um intenso remorso que durou segundos infinitos. Chacoalhei a cabeça e voltei a mim. Peguei o copo de café em cima da mesa, como se o recrutasse para meu companheiro. Como se ele pudesse me proteger. Eu estava com um medo irracional.
Girei a chave, e antes que pudesse ver quem batia na porta, fui surpreendido, e levei três tiros no peito. O rapaz de luvas foi embora, e olhando ao meu redor, vi uma poça de sangue, meu sangue, fazer uma forma disforme no tapete da sala.
O que mais me deixa confuso é que o livro continuou lá, na minha estante, com os outros livros. Não resisti e acabei por morrer naquela sexta-feira. O céu já estava escuro. Parece que a tal “transição para algo especial” realmente ocorreu para mim. Penso hoje em dia que tardes são perigosas, mão não me arrependo do meu singelo roubo.

2 comentários:

  1. já disse, a única coisa que falta no texto é o "baseado em fatos reais"
    adorei a foto.

    ;*

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  2. Gostei bastante! Publique no blog da Oficina. E aí o que conta de novo?

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